quarta-feira, 8 de abril de 2020

Notas sobre a Pedagogia de Hugo de São Vitor

Hugo de São Vitor nasceu na Saxônia, que hoje faz parte do território da Alemanha, no ano de 1096. Ainda jovem sentiu a vocação religiosa e mudou-se para Paris com a intenção de ingressar no Mosteiro de São Vitor, no qual residiu até a sua morte em 1141. Ele viveu, portanto, na primeira metade do século dos anos 1100.

A época em que viveu Hugo de São Vitor foi uma das mais importantes da história da civilização ocidental, pois foi nela que começaram a se organizar as nações que hoje fazem parte da Europa.

Mil e cem anos antes da época de Hugo, quando nasceu Jesus Cristo, não existiam Inglaterra, França, Alemanha, Portugal nem tantos outros países da Europa. Na época de Cristo a Europa, o norte da África e o Oriente Médio constituíam um todo conhecido como Império Romano. A ausência de fronteiras e as facilidades de comunicação dentro de um império tão grande muito auxiliou para que o cristianismo se propagasse mais facilmente por todo o mundo civilizado daquele tempo.

Entretanto, a partir dos anos 400 e durante vários séculos que se seguiram, muitas hordas de bárbaros provenientes da Europa Oriental e do interior da Ásia passaram a invadir o território do Império Romano que acabou aos poucos se esfacelando. Embora tivesse havido algumas épocas de calma, as invasões e as desordens que resultaram delas só puderam começar a ser definitivamente controladas, possibilitando a organização daquelas que são as atuais nações da Europa, na época de Hugo de São Vitor. Entre o ano 1100, próximo ao nascimento de Hugo, e o ano 1300, próximo à morte de Santo Tomás de Aquino, houve um extraordinário renascimento da civilização na Europa em todos os aspectos, incluindo a vida religiosa, a teologia e a educação. Pertencem a este período da história as vidas de São Francisco de Assis e de São Domingos.

No início deste período, no ano 1100, São Vitor era o nome de uma capelinha situada nos arredores de Paris e freqüentada por pessoas que vinham, longe do tumulto da cidade, consagrar algum tempo à meditação e à oração. Em 1108, com o fim de melhor poder dedicar-se às coisas de Deus, um sacerdote professor da escola anexa à Catedral de Notre Dame, chamado Guilherme de Champeaux, transferiu-se para lá junto com vários de seus alunos. Mesmo residindo em São Vítor, Guilherme continuou sendo procurado, não só pelo seu exemplo, como também pelos seus ensinamentos, que não deixou de ministrar. Assim surgiu ali o mosteiro de São Vítor.

Quando Hugo pediu para ser admitido no mosteiro de São Vitor, Guilherme já não residia mais nele. Tinha sido promovido a bispo e havia deixado outros em seu lugar, encarregados do governo do mosteiro. Algum tempo depois a tarefa de organizar a escola de Teologia anexa ao mosteiro seria confiada a Hugo de São Vitor.

Raras vezes na história humana uma escolha pôde ter sido tão feliz. No mosteiro organizava-se uma grande biblioteca que daria acesso a Hugo ao que de melhor havia sido escrito pela tradição cristã. A fama de São Vitor já havia atravessado as fronteiras e espalhava-se por toda a Europa; ela trazia ao mosteiro, de todas as partes, estudantes de notável talento, como tinha sido o caso do próprio Hugo, que para lá se tinha dirigido proveniente do Sacro Império Germânico, de Ricardo de São Vitor, que ali chegou proveniente da Escócia, e de Pedro Lombardo, que vinha do norte da Itália encaminhado por São Bernardo. Já é coisa rara que um talento da envergadura de Hugo, homem de inteligência brilhante, santidade manifesta e notável vocação docente se veja diante de tantos e tão excelentes recursos materiais e humanos; mais raro ainda é que alguém nestas condições se veja encarregado de, além de ensinar, organizar também a escola. Esta tarefa suplementar obrigou Hugo adicionalmente a explicar aos alunos como se deveria estudar, aos professores como se deveria ensinar e à escola como se deveria organizar, e isto não para obter algum diploma, que naquela época ainda de nada valiam, mas para, a partir de um sólido conhecimento das Sagradas Escrituras e das obras dos Santos Padres, empreenderem a busca da santidade. O conjunto da obra de Hugo de São Vitor mostra que ele elaborou um sistema de Pedagogia em que o estudo de torna um instrumento de ascese em perfeita consonância com os ensinamentos do Novo Testamento a respeito da fé, da graça e da oração, da necessidade da graça para a prática das virtudes e dos frutos que se esperam do desenvolvimento da vida espiritual.

Hugo de São Vítor mostrou, em suma, como se organiza o estudo, o ensino e a escola para que, sem deixar de ser uma escola, nem perder nenhuma das características que tradicionalmente se atribuem a uma escola, ela tenha como meta a santidade. Esta meta não é algo acrescentado ou justaposto ao que já seria a escola, mas é aquilo que dita a própria essência de sua organização e de seus métodos.

Hugo mostrou ainda que se isto pode ser possível, é porque esta é a verdadeira e legítima finalidade da escola. São as outras escolas, e não esta, que representam um desvio do verdadeiro ideal do ensino.

2. A pedagogia vitorina.
Uma das características marcantes da pedagogia moderna consiste no ter ela conseguido dissociar, cada vez mais profundamente ao longo dos últimos 700 anos, o estudo da busca de Deus.

Em sua época, Hugo de São Vitor organizou o estudo como um instrumento de ascese cristã a ser utilizado conjuntamente com os demais meios para o desenvolvimento da vida do espírito. Quatrocentos anos mais tarde, na época da Renascença, com o advento da educação a que se chamou de humanista, o estudo passou a ser utilizado somente como instrumento para a formação do caráter; se as escolas religiosas ainda orientavam os alunos a respeito da vida espiritual, esta orientação era algo paralelo ou acrescentado à escola e não tinha mais relação necessária com o estudo nela desenvolvido pelos alunos.

Mais recentemente, principalmente nos dois últimos séculos, abandonou-se também o espírito da educação humanista e o objetivo mais importante do sistema escolar deixou de ser a formação do caráter do aluno para se tornar a aquisição de determinadas habilidades úteis para a sociedade ou exigidas pelo mercado de trabalho. A formação do caráter passou a ser buscada, de modo principal, indiretamente através da aquisição e do exercício destas habilidades. No mundo moderno, de fato, não é um conhecimento profundo da natureza humana que determina como a escola deve ser organizada, mas são as diferentes políticas de desenvolvimento e as diversas necessidades do mercado de trabalho que exigem um determinado número de profissionais habilitados que ditam as orientações das políticas educacionais.

Na educação vitorina, porém, o estudo é organizado de tal modo que se torna parte integrante da ascese cristã. O estudo e a ascese não são atividades independentes nem paralelas. Ao contrário, uma coisa faz parte da outra, a tal ponto que este pode ser corretamente identificado como um dos elementos que distinguem o que se pode chamar de espiritualidade vitorina, uma determinada forma de desenvolvimento da vida cristã que inclui dentro dela a pedagogia, e que pode se desenvolver, como em um lugar próprio, em uma escola.

Não é possível expor em poucas páginas a pedagogia vitorina, porque ela não se encontra apenas nos textos especificamente dedicados por Hugo de São Vitor a este assunto, mas está também espalhada em toda a sua obra, freqüentemente entrelaçada com princípios de Filosofia e Teologia que pervadem não só os seus escritos como também os de seu discípulo Ricardo de São Vitor, cuja obra, juntamente com a de Hugo, forma um só conjunto.

Sendo assim, o que examinaremos em seguida, embora faça parte da pedagogia de Hugo de São Vitor, não é um resumo da pedagogia vitorina, mas apenas um apanhado de algumas observações retiradas de suas obras, das quais ele se utilizava para orientar aqueles que tinham a intenção de se dedicar ao estudo da Ciência Sagrada no intuito de buscarem a Deus.

3. O estudo na pedagogia vitorina.
Vamos examinar mais extensamente o nono capítulo do Quinto Livro do Didascalicon, em que Hugo de São Vitor explica a função do estudo dentro do conjunto da vida espiritual, como ele deve coordenar-se com os demais meios de perfeição, qual a relação que ele tem para com o papel da graça e como ele se ordena, através da oração, à contemplação.

Na maioria das escolas modernas a finalidade da atividade do aluno é a apreensão do conteúdo de uma determinada disciplina tal como é exposta pelo professor. Se a escola conseguir, além disto, motivar o aluno a estudar por si mesmo e mais profundamente aquilo que o professor expôs, pode-se considerar o ensino ministrado por esta escola como sendo de alta qualidade.

O texto abaixo de Hugo de São Vitor mostra, no entanto, que a atividade da escola vitorina começa precisamente aí onde terminam as aspirações da escola moderna. Motivar o aluno para o estudo não é o objetivo da pedagogia vitorina, mas o seu ponto de partida. Segundo Hugo de São Vitor o estudo, enquanto tal, ele próprio se ordena a uma série de outras atividades do espírito, e todas estas, por sua vez, se ordenam, mediante o auxílio da graça, como ao seu fim, ao que se chama de contemplação. No entender de Hugo de São Vitor, portanto, a função da escola inclui muitas mais coisas do que apenas o estudo, embora seja organizada de tal modo que, no que depende dela, o estudo seja a origem de todas.

Texto de Hugo de São Vitor:
Dicascalicon, L.V, C.9.

“Há quatro coisas nas quais se exerce a vida dos santos, que são como degraus pelos quais se elevam à futura perfeição. São estes: o estudo, ou doutrina; a meditação; a oração; a ação.

Há ainda uma quinta que se segue destas, que é a contemplação, que é, de certo modo, o fruto destas quatro primeiras. Na contemplação temos antecipadamente já nesta vida a futura recompensa das boas obras. Foi por isto que o salmista, falando dos preceitos de Deus e recomendando-os, logo em seguida acrescentou: “Grande é a recompensa para os que os observarem”. Salmo 18

Destes cinco graus que falamos, o primeiro, isto é, a leitura, pertence aos principiantes. O maior de todos, isto é, a contemplação, pertence aos perfeitos. Quanto aos intermediários, será mais perfeito aquele que os tiver subido em maior número. Em outras palavras, o primeiro, isto é, a leitura, dá a inteligência. O segundo, a meditação, fornece o conselho. O terceiro, a oração, pede. O quarto, a ação, busca. O quinto, a contemplação, encontra.

Se, portanto, lês, ou estudas, e tens por isto a inteligência e conheceste o que se deve fazer, isto já é princípio do bem, mas ainda não te será suficiente, não és perfeito ainda.

Sobe, pois, na arca do conselho, e medita como poderás realizar aquilo que aprendeste através da leitura e do estudo que deve ser feito. De fato, houve muitos que possuíram a ciência, mas poucos foram aqueles que souberam de que modo era importante saber.

O conselho do homem, porém, sem o auxílio divino, é enfermo e ineficiente. É necessário, pois, levantar-se à oração, e pedir o seu auxílio, sem o qual nenhum bem pode ser feito; isto é, a sua graça, a qual, antes que tivesses chegado até aqui para pedí-la era ela que já te iluminava, e daqui para a frente será quem haverá de dirigir os teus passos para o caminho da paz, e de cuja única boa vontade depende que sejas conduzido ao efeito da boa obra.

Resta agora para ti que te prepares para a boa ação, de tal maneira que aquilo que pedes na oração mereças receber pela obra, se Deus consigo quiser operar. Não serás obrigado, serás ajudado. Se apenas tu operares, nada realizarás; se apenas Deus operar, nada merecerás. Opere Deus para que tu possas; opera tu para que algo mereças. O caminho pelo qual se vai à vida é a boa obra, e aquele que corre por este caminho busca a vida.

Conforta-te e age virilmente. Esta via tem o seu prêmio. E quantas vezes, fatigados pelos seus trabalhos, não somos ilustrados do alto pela graça, saboreando e vendo “quão suave é o Senhor”. Salmo 33

Assim se realiza o que dissemos acima, que aquilo que a oração busca, a contemplação encontra”.
4. Conselhos diversos ao estudante.
a) O estudante deve ser humilde.
A humildade, diz Hugo de São Vitor, é o princípio do aprendizado. O estudante que desde o início não é movido pela humildade, nunca alcançará a sabedoria. Vamos examinar, a este respeito, a introdução do Opúsculo sobre o Modo de Aprender:

“A humildade”, diz Hugo de São Vítor, “é o princípio do aprendizado, e sobre ela, muita coisa tendo sido escrita, as três seguintes, de modo especial, dizem respeito ao estudante. A primeira é que não tenha como vil nenhuma ciência e nenhuma escritura. A segunda é que não se envergonhe de aprender de ninguém.

A terceira é que, quando tiver alcançado a ciência, não despreze aos demais. Muitos se enganaram por quererem parecer sábios antes do tempo, pois com isto se envergonharam de aprender dos demais o que ignoravam.

Tu, porém, meu filho, aprende de todos de boa vontade aquilo que desconheces. Serás mais sábio do que todos, se quiseres aprender de todos. Nenhuma ciência, portanto, tenha como vil, porque toda ciência é boa. Nenhuma escritura, ou pelo menos, nenhuma lei desprezes, se estiver à disposição. Se nada lucrares, também nada terás perdido. Diz, de fato, o Apóstolo: “Omnia legentes, quae bona sunt tenentes” . I Tes 5

O bom estudante deve ser humilde e manso, inteiramente alheio aos cuidados do mundo e às tentações dos prazeres, e solícito em aprender de boa vontade de todos.

Nunca presuma de sua ciência; não queira parecer douto, mas sê-lo; busque os ditos dos sábios, e procure ardentemente ter sempre os seus vultos diante dos olhos da mente, como um espelho”.
b) O que é a humildade.
A humildade, segundo Hugo de São Vítor, coincide com a primeira bem-aventurança, aquela da qual Jesus dizia: “Bem aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus” (Mat. 5,3), e que é o ponto de partida da vida cristã. Sobre esta passagem diz Hugo de São Vitor: “Bem aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus: há os que são ricos de espírito, e há os que são pobres de espírito. Os ricos de espírito são os soberbos; os pobres de espírito são os humildes”. Allegoriae Utriusque Testamenti, NT. II, 1

c) Renúncia.
Disse Jesus que quem não renuncia a si mesmo não poderia ser seu discípulo. Não era outro o objetivo dos alunos de Hugo de São Vitor senão serem discípulos de Cristo, aprenderem o que é o Evangelho, como se o vive e como se pode ensiná-lo aos outros. Assim também Hugo fêz exigências similares às de Cristo aos seus estudantes. O estudante que desejar elevar-se até Deus deve ser, conforme já vimos, “humilde e manso, inteiramente alheio aos cuidados do mundo e às tentações dos prazeres, solícito em aprender de boa vontade de todos”.

d) Buscar em primeiro lugar a verdade.
“É necessário também”, diz Hugo de São Vitor, “que aquele que tiver iniciado este caminho procure aprender nos livros em que estudar não apenas pela beleza do fraseado, mas também pelo estímulo que eles oferecem à prática das virtudes, de tal maneira que o estudante procure neles não tanto a pomposidade ou a arte das palavras, mas a beleza da verdade”.

Didascalicon, V, 7
Eis algo que, na pedagogia vitorina, é de essencial importância.

Jesus promete, no Evangelho, como prêmio aos que seguirem os seus preceitos, que encontrarão a verdade e a verdade os libertará, ou tornará livres. Ao dizer isto, Jesus se referia à verdade que se alcança através do dom do Espírito Santo a que as Escrituras denominam de sabedoria, um objetivo elevadíssimo, ao qual se ordena todo o desenvolvimento da vida espiritual. O estudante, porém, que desejar chegar a tanto, deverá acostumar-se primeiro a deixar-se libertar continuamente através de verdades menores. Consideremos, pois, primeiramente, do que libertam estas verdades menores.

Na vida humana o desenvolvimento da vida do intelecto é sempre precedido pelo desenvolvimento da vida dos sentidos, e é só gradualmente que se uma se emancipa à outra. Mesmo assim, porém, isto só ocorre com naturalidade quando a vida das virtudes e da inteligência se inicia precocemente e bem, algo raramente observado nos dias de hoje. Quando não é este o caso, o homem desenvolve uma visão do mundo que partirá de uma apreciação fortemente baseada nos sentidos, cujos critérios de validade serão a servilidade na imitação dos costumes sociais e a força das paixões e não a evidência da verdade. Nestas condições, o desenvolvimento da inteligência será orientado para que esta sirva de instrumento para a vida dos sentidos e das paixões.

No Eclesiástico pode-se ler: “Assim como o Sol resplandecente ilumina todas as coisas, assim da glória do Senhor estão cheias as suas obras”. Ecles. 43,16

A primeira parte desta sentença é evidente para todos, em qualquer época e lugar. Já a segunda será percebida com naturalidade, mas de forma gradual e com força sempre crescente, naqueles em que a virtude e a inteligência se iniciaram desde cedo, assim que se tiverem apresentado as primeiras possibilidades de o fazerem; para as demais pessoas, a segunda parte da sentença do Eclesiástico pouca coisa significará além de uma simples poesia que se esquece após ter sido ouvida. Por mais que os primeiros tentem explicar aos segundos que algo de verdadeiramente extraordinário nos está sendo apontado na segunda parte desta passagem do Eclesiastes, eles não conseguirão entender a razão para tanto entusiasmo. Embora freqüentemente eles próprios não se dêem conta deste fato, as psicologias de ambos estes grupos de homens foram construídas de um modo estruturalmente diverso e é por isso que o Eclesiastes também nos diz a este respeito: “Os perversos dificultosamente se corrigem, e o número dos insensatos é infinito; se a árvore cair para a parte do meio dia, ou para a do norte, em qualquer lugar onde cair, aí ficará”. Ec. 1,14; 9,3

Deve-se considerar, além disso, que mesmo para os homens de ambos os casos, a mensagem contida na Revelação estará sempre situada num plano extraordinariamente mais elevado do que aquele em que os homens costumam colocar-se. A este respeito nos diz, de fato, o profeta Isaías: “Os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os meus caminhos são os vossos caminhos, diz o Senhor. Quanto o céu sobe em elevação à terra, tanto se elevam os meus caminhos acima dos vossos, e os meus pensamentos acima dos vossos”. Is. 55,8-9

Esta é a razão por que todos aqueles que se dedicam ao estudo da Ciência Sagrada se deparam constantemente com uma visão do mundo que difere enormemente de suas opiniões e pontos de vista pessoais. Ainda que se tratem das melhores pessoas, elas encontram incessantemente neste estudo a proposta de vivência de virtudes e apresentação de verdades que estarão em conflito com os seus pequenos pontos de vista pessoais. Se o estudo da Ciência Sagrada é conduzido corretamente isto não será uma ocorrência fortuita, mas algo que deverá acontecer continuamente, pois esta é precisamente uma das justificações para a sua existência.

O que fazer, porém, quando nos encontrarmos diante de um evento como este? Admirar a beleza da verdade apreendida não será suficiente; será necessário renunciar decididamente aos nossos próprios pontos de vista, que freqüentemente representam o atrelamento da inteligência à vida das paixões, libertando-a para habituá-la a seguir mais docilmente a evidência da verdade. A menos que estejamos dispostos a isto estaremos estudando, no dizer de Hugo de São Vitor, apenas pela “beleza do fraseado e pela arte das palavras” e não “pela prática das virtudes e pela busca da verdade”.

Deve-se considerar, ademais, que há um motivo mais específico pelo qual nesta passagem do Didascalicon Hugo de São Vitor se referiu aos alunos que buscam no estudo a beleza do fraseado e a arte das palavras como sendo aqueles que se desviaram da verdadeira meta. É que em sua época, assim como em todo o mundo antigo, o principal desvio da educação se manifestou sob a forma da educação retórica, a qual deu origem, durante a Renascença, à educação que hoje se conhece como humanista, em que o aluno estudava para alcançar uma bagagem razoável de cultura geral através da qual adquiriria boas maneiras e a capacidade de escrever e falar corretamente e bem. A expressão de Hugo de São Vitor, ao dizer que estes alunos se aproximavam da escola já com a idéia preconcebida de que ali estavam para buscar “a beleza do fraseado e a arte das palavras” descreve perfeitamente a atitude fundamental que à época norteava a muitos em seus estudos. Hoje em dia não percebemos mais a força que estas poucas palavras de Hugo tinham porque o principal desvio da educação consiste em estudar com a finalidade de aprender alguma profissão ou técnica com a qual pode-se conseguir, ou não, um retorno financeiro. Este, na ótica da pedagogia vitorina, é um desvio ainda mais grave e ao qual só pode ter-se chegado por ter-se passado primeiro pelo anterior sem que se tivesse percebido suficientemente toda a gravidade do que estava ocorrendo.

Para Hugo de São Vitor o que o estudante deve procurar com o estudo é o libertar-se, através da busca da verdade, da estreita visão de mundo que lhe é imposta pela vida das paixões e de que vive tanto ele como a sociedade à qual ele imita. Estas coisas aprisionam a inteligência e não lhe permitem seguir a luz da graça e a própria evidência de uma verdade que deveria, à medida em que é buscada, tornar-se cada vez mais radiante.

e) Método.
“Aquele que diante de uma multidão de livros não guarda o modo e a ordem da leitura”, continua Hugo de São Vitor, “como que andando em círculos no meio de uma densa floresta, perde-se do reto caminho. É de pessoas assim que a Sagrada Escritura diz que estão sempre aprendendo, mas nunca chegam ao conhecimento da verdade”.

Didascalicon V, 5
f) Nunca abandonar as boas obras.
“Saiba o estudante que não chegará ao seu propósito se se dedicar de tal maneira apenas ao estudo que se veja obrigado a abandonar as boas obras”.

Didascalicon V, 7
g) O estudo deve ser um deleite.
“Saiba também que não chegará ao seu propósito se, movido por um vão desejo de ciência, dedicar-se às escrituras obscuras e de profunda inteligência, nas quais a alma mais se preocupa do que se edifica. Para o filósofo cristão o estudo deve ser uma exortação, e não uma preocupação; deve alimentar os bons desejos, e não secá-los. Como gostaria de mostrar àqueles que se puseram ao estudo por amor da virtude, e não das letras, o quanto é importante para eles que o estudo não lhes seja ocasião de aflição, mas de deleite. Quem, de fato, estuda as Escrituras como preocupação e, por assim dizer, as estuda para aflição do espírito, não é filósofo, mas negociante, e dificilmente uma intenção tão veemente e indiscreta poderá estar isenta de soberba. Deve-se considerar também que o estudo de duas maneiras costuma afligir o espírito, a saber, pela qualidade, se se tratar de um material muito obscuro, e pela sua quantidade, se houver demais para estudar. Em ambos estes casos deve-se utilizar de grande moderação, para que não aconteça que aquilo que é buscado como uma refeição venha a ser utilizado para sufocar-nos. Há aqueles que tudo querem estudar; tu não contendas com eles, seja-te suficiente a ti mesmo: que nada te importe se não tiveres lido todos os livros. O número de livros é infinito, não queiras seguir o infinito. Onde não existe o fim, não pode haver repouso; onde não há repouso, não há paz; e onde não há paz, Deus não pode habitar”.

Didascalicon V, 7
h) O que estudar.
Eis uma questão impossível de se responder inteiramente em poucas páginas. Segundo Hugo de São Vítor, o estudo deve conduzir à aquisição da Ciência Sagrada, através da qual o aluno possa conduzir-se, por sua vez, no caminho da virtude e da contemplação. Surge então a questão de o que, segundo este modo de se entender o estudo, deve-se estudar ou deixar de estudar.

A primeira resposta que encontramos nos escritos de Hugo de São Vitor a este respeito é que se deve estudar tudo, sem desprezar nada. Uma afirmação como esta pode parecer, num primeiro exame, um despropósito, mas Hugo, neste ponto, foi bastante claro. Segundo ele nos explicou no início do Opúsculo sobre o Modo de Aprender, o aluno que despreza de antemão qualquer forma de conhecimento, o aluno que “tem como vil alguma ciência ou alguma escritura”, mostra não possuir com isto a virtude da humildade, e a humildade é, segundo Hugo, “o princípio de todo o aprendizado”. E no sexto livro do Didascalicon ele vai ainda mais longe; ali ele nos diz o seguinte:

“Eu ouso afirmar que nunca desprezei nada que pertencesse ao estudo; ao contrário, freqüentemente aprendi muitas coisas que outros as tomariam por frívolas ou mesmo ridículas. Algumas destas coisas foram pueris, é verdade; todavia, não foram inúteis. Não digo isto para jactar-me de minha ciência, mas para mostrar que o homem que prossegue melhor é o que prossegue com ordem, não o homem que, querendo dar um grande salto, se atira no precipício. Assim como as virtudes, assim também as ciências tem os seus degraus. É certo, tu poderias replicar: 'Mas há coisas que não me parecem ser de utilidade. Por que eu deveria manter-me ocupado com elas?' Bem o disseste. Há muitas coisas que, consideradas em si mesmas, parecem não ter valor para que se as procurem. Mas, se consideradas à luz das outras que as acompanham, e pesadas em todo o seu contexto, verifica-se que sem elas as outras não poderão ser compreendidas em um só todo, e, portanto, de forma alguma devem ser desprezadas. Aprende a todas, verás que nada te será supérfluo. Uma ciência resumida não é uma coisa agradável”.
Se este texto do Didascalicon é claro ao afirmar que o estudo não deve excluir de seu interesse nenhuma forma de conhecimento, ele não é porém menos claro ao explicar as razões pelas quais se recomenda tal preceito. Hugo quer que o aluno nada exclua de seu interesse para com isto aprender a buscar metodicamente a integridade do conhecimento que é um todo ordenado cujas partes principais não podem ser compreendidas em um só conjunto sem o concurso das partes secundárias. Se o estudante, portanto, não deve desprezar nenhuma forma de conhecimento, isto não significa que deve aplicar-se a todas por igual ou preferir umas às outras sem critério. Indubitavelmente, segundo Hugo de São Vitor, a parte principal do estudo é o conhecimento das Sagradas Escrituras e da Ciência Sagrada que dela deriva.

O que, porém, e como deve ser estudado para se alcançar o conhecimento desta Ciência Sagrada é algo que não é possível de ser respondido nas poucas páginas deste texto. Há, entretanto, pelo menos um critério tão importante que não pode deixar de ser aqui mencionado. Pelas explicações e pelos exemplos dados por Hugo de São Vítor, depreende-se que, independentemente da questão do conteúdo do estudo, ele deve ser conduzido preferencialmente através dos textos cujos autores escreveram manifestamente sob a influência dos dons de entendimento e sabedoria, e que são, em geral, os escritos dos teólogos que também foram santos. A razão desta exigência consiste em que, conforme já havíamos apontado, o estudo deve ordenar-se, como ao seu fim último, à contemplação. Chama-se contemplação àquela operação da alma que surge no homem quando, sob a influência dos dons do Espírito Santo de entendimento e de sabedoria, a uma fé firme, constante e pura se acrescenta uma caridade intensa. Quando o homem consegue viver as virtudes teologais num grau tão alto a ponto de poder elevar-se à contemplação, esta se torna um dos principais meios de santificação para o homem. As obras dos teólogos em que se manifesta a influência do dom de entendimento ou do dom de entendimento elevado pelo dom de sabedoria são obras que derivam, portanto, do próprio exercício da vida contemplativa. “Elas são doces e repletas de amor pela vida eterna”, diz Hugo de São Vitor no quinto livro do Didascalicon. O convívio do aluno com elas, ao contrário das demais obras, ainda que tratem dos mesmos assuntos, habitua-o gradativamente a perceber que elas têm uma origem diversa dos livros comuns e acaba por auxiliá-lo a conduzir-se na busca da contemplação. Ora, é justamente este o fim a que se ordena o estudo, e é por isto que as próprias Sagradas Escrituras já distingüiam entre estes e os demais livros:

“As palavras dos sábios”, diz o Eclesiastes, “são como aguilhões, e como cravos fixados no alto, que por meio do conselho dos Mestres nos foram comunicadas pelo único Pastor. Não busques, pois, meu filho, mais alguma coisa além destes. Não se põe termo em multiplicar livros, e a meditação freqüente é aflição da carne”.

Ecl.12,11-12
i) Estudar com o propósito de ensinar.
Eis algo que, tanto quanto sabemos, Hugo não ensinou por escrito, mas o fêz mais do que manifestamente pelo exemplo. Aqueles que estudam para um dia poderem ensinar, seguindo o preceito de Cristo, são os que encontrarão a inspiração do Espírito Santo. E foi a aqueles a quem Jesus acabava de pedir que ensinassem que Ele também prometeu que permaneceria com eles até o fim dos tempos (Mat 28,20).

j) Aspirar às coisas mais altas.
“O que eu mais desejo”, termina aqui Hugo de São Vitor, “é mostrar como aqueles que de boa vontade se dedicam ao aprender são dignos de louvor. É necessário, porém, e tarefa de grande importância, prevenir aos eruditos para que não ocorra que talvez voltem os seus olhos para aquilo que ficou para trás e consolar aos principiantes se às vezes desejam já chegar onde aqueles estão. Nosso propósito deverá ser, portanto, o de subir sempre. Roguemos, pois, à sabedoria, para que se digne resplandecer em nossos corações e iluminar-nos em seus caminhos para introduzir-nos naquele banquete puro e sem animalidade”.

Didascalicon V,8-9;VI,13

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Fonte: Introdução ao Cristianismo - http://www.accio.com.br/Nazare/1946/

http://planeta.terra.com.br/arte/ecandido/

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Retirado de: .

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