Das manifestações violentamente pacíficas
Quantas vezes você já ouviu no noticiário que uma “manifestação pacífica acaba em violência”? Várias vezes, pelo menos nos últimos meses. E há uma razão para ser assim.
Abro o jornal e leio a reportagem sobre a manifestação do Passe-Livre em Londrina, que, como era de se esperar, acabou em confusão, depredação do patrimônio público, destruição dos ônibus e muita correria. A manifestação era pacífica, e, como em toda manifestação pacífica neste país de Dilma, a paz só não foi observada porque alguns elementos se infiltraram no movimento para promover a baderna. Fica a pergunta: quem eram esses elementos?
Se para alguma coisa me serviu a universidade, foi para compreender melhor como funcionam, por dentro, essas manifestações pacíficas que terminam invariavelmente em pancadaria e vandalismo.
Vai um breve testemunho pessoal para a instrução dos pequenos.
O ano era 2000, e eu era um feliz estudante da USP. Cursava Ciências Sociais e morava no CRUSP. Tinha tudo para ser o perfeito idiota latino-americano, mas já na época preferia ser apenas idiota, incapaz da perfeição e refratário à ostentação da minha latino-americanidade. As festividades em comemoração aos 500 anos do Descobrimento se aproximavam e com elas os protestos por todo o país. O DCE da USP não poderia ficar de fora e marcou sua manifestação “contra os 500 anos”. Como os 500 anos eram uma entidade por demais abstrata, o movimento manifesteiro precisava de um alvo mais concreto, que foi gentilmente cedido pela Rede Globo, na forma do seu famoso Relógio dos 500 anos. O leitor mais jovem talvez não lembre que raio de coisa ridícula era esse relógio, projetado por Hans Donner e instalado Brasil afora, mas o Google poderá ajudá-lo nesse exercício de consciência histórica. Procure aí. A manifestação pacífica foi marcada para o dia 22 de fevereiro. Começaria no Largo de Pinheiro e marcharia até a praça Luís Carlos Paraná, na Av. Faria Lima, onde se encontrava o símbolo do imperialismo, o Relógio da Globo. E o McDonalds da esquina…
E aqui faço um pequeno parêntese para a digressão sobre o espírito da época. Os estudantes então andavam inquietos, crentes na inevitável vitória da luta anti-neoliberal. No ano anterior, em 1999, a Rodada do Milênio havia sido interrompida pelo que ficou conhecido no folclore esquerdista como “A batalha de Seattle”. Organizações do mundo inteiro (não faltaram nossos MST, CUT e PT) viajaram para a terra do Nirvana, a banda, com o objetivo de tocar o terror e impedir as negociações do Grande Capital e da globalização excludente, defendendo uma sociedade mais justa, igualitária, etc, etc, etc. E o pau quebrou. E foi porrada para todo lado. E os manifestantes perceberam, sobretudo aqueles ligados ao grupo ATTAC, da França, que podiam enfrentar a polícia utilizando algumas táticas de combate de rua. Meses depois, o ATTAC, cuja filial brasileira operava na Unesp, exportava para todo o mundo subdesenvolvido cursos de “guerrilha urbana” e táticas para combater e se defender de tropas de choque. O estacionamento da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP era frequentemente utilizado, em finais de semana, como campo de treinamento. Se não me falha a memória, o então presidente do Grêmio da FAU era filho de uma das lideranças nacionais do MST. E o professor João Sette Whitaker já era uma espécie de guru anti-globalista entre os alunos de arquitetura. O sucesso da revolta de Seattle fazia a cabeça dos estudantes, e muitos se sentiam como Marighellas pós-modernos. No início de janeiro daquele ano, a Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador, organização membro do Foro de São Paulo, havia dado um golpe de Estado, liderado pelo coronel comunista Lucio Gutiérrez, que prometia adotar o modelo chavista na condução da economia e das coisas públicas. O golpe fracassaria dali a uns dias, mas o clima de “agora vai” empolgava a esquerda continental. Além da euforia internacional, os hormônios revolucionários paulistanos eram excitados pelo desgoverno do prefeito Celso Pitta, herdeiro de Paulo Maluf, atual aliado político do PT. A Revolução começaria com o Relógio da Globo, faria uma pausa no McDonalds e acabaria com a decapitação de Pitta. Nessa época, o grito “Fora já, fora já daqui, o FHC e o FMI” era poesia mais revolucionária do que ver a banda passar cantando coisas de amor. Fecho o parêntese.
No dia 22 de fevereiro, reuniram-se no Largo de Pinheiros umas mil pessoas, a maioria estudantes secundaristas e alunos da USP, arrebanhados pelo DCE. A organização, na verdade, ficava por conta do Comitê Brasil Outros 500, que prometia acabar com a festa de aniversário de descobrimento de Vera Cruz. O Sintusp, claro, dava sua força, fornecendo ônibus, caminhão de som, sanduíche de mortadela e coca-cola. Havia uma meia dúzia de anarco-punks, vindos provavelmente da Galeria do Rock. E eu, observando tudo e morrendo de sede naquele calor desgraçado.
Eu não tinha nada contra os 500 anos, uma realidade cronológica que protesto algum poderia revogar. Nem contra o Relógio. Muito menos simpatizava com qualquer coisa revindicada ali. Poderia dizer que meu interesse era meramente antropológico, mas estaria mentindo. A verdade é que eu estava no meio daquela bagunça só porque gostava da bagunça em si e porque não tinha nada melhor para fazer no CRUSP, que a essa hora deveria estar um deserto. Sem convicção necessária para tomar parte no coro (Fora já, fora já daqui…) e sem ânimo exigido para caminhar até o Relógio na Faria Lima, resolvi me pendurar no caminhão de som, onde, além de água fresca, eu tinha uma visão privilegiada da muvuca.
Começa a marcha. Algum sindicalista grita uma palavra de ordem. A garotada pinta a cara. Os punks vão na frente. Há uma movimentação mais impaciente da polícia, que escolta a manifestação até a praça. O caminhão de som estaciona próximo ao Relógio. A polícia faz um cordão de isolamento para proteger o monstrengo de Hans Donner. Mas a manifestação é pacífica, e ninguém vai fazer coisa alguma, exceto chamar a polícia de fascista. Tudo muito tranquilo. Até que membros do DCE, que estavam no caminhão de som e que eram os organizadores da passeata, começam a retirar de caixas e a distribuir aos manifestantes, sobretudo aos punks, balões com tinta e garrafas com gasolina. Tudo na moita, para não chamar atenção. Começa a provocação. Os manifestantes se aproximam do cordão de isolamento, a polícia tenta afastá-los. Alguém joga um balão de tinta por sobre os policiais e atinge o relógio. A multidão vibra. Outro balão. A multidão delira. Alguns policiais tentam dispersar os baloneiros. A multidão corre. Começa a chuva de balões. De pedras. De paus. Em cima do caminhão de som, uma garota do DCE, cínica e histericamente, grita: “sem violência, sem violência”. A polícia parte para cima da multidão e desfaz o cordão de isolamento. Correria e cacetada para todo lado. “Sem violência, sem violência”. Alguns anarco-punks se aproveitam da confusão e tentam botar fogo no Relógio. Primeiro jogam molotovs, que falham. Depois espalham a gasolina recebida do DCE e atiram fogo, mas as chamas pequeno-burguesas não contribuem para o avanço da revolução e se apagam, deixando o falo hansdônnico intacto. Tum, tum, tum. Chega o Choque. O bagulho fica lôco, e o McDonalds, cheio de estudantes escondidos até debaixo da mesa. A tropa de choque fecha uma esquina. Fecha outra. Toma a avenida. Encurrala a multidão mais valente contra a parede de um edifício e começa a fazer o que faz de melhor: botar juízo em vagabundo. Nisso já têm bomba de fumaça, gás lacrimogênio, o diabo. A menina do DCE sumiu do caminhão de som, que está abandonado naquela paisagem mais ou menos de guerra civil, mais ou menos de forró universitário. Um e outro punk, um e outro estudante foram presos. São os presos políticos, cuja libertação será exigida pelo Comitê Brasil Outros 500, ao longo da semana.
No dia seguinte, em declaração ao Estado de São Paulo, lideranças do DCE dizem que o movimento era pacífico, mas que fora infiltrado por algumas pessoas desejosas de descaracterizar a manifestação. A foto de um punk incendiando umas folhas de papel decide o bode expiatório: tudo corria bem, até que os punks resolveram provocar a polícia e começar a confusão. Jornalistas e estudantes ficam satisfeitos com a versão, o DCE sai limpo da história, mesmo tendo sido ele, desde o começo, quem planejara todo o ato e seus desdobramentos mais violentos, e promete outra manifestação pacífica para a semana seguinte, na Avenida Paulista.
Pego meu sanduíche de mortadela e minha coca-cola com o funcionário do Sintusp. Caminho até o Largo de Pinheiros e tomo o ônibus de volta para o Butantã. Desce o pano. Fim da farsa.
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