sábado, 2 de novembro de 2019

O Óbvio Lulante

Eduardo Levy

O Óbvio Ululante, coleção de crônicas de Nelson Rodrigues do final de 1967 a meados de 1968, é livro de 300 páginas que se lê como se fossem dez. Aliás, minto. Não se lê O Óbvio Ululante. Ouve-se O Óbvio Ululante. É essa a sensação clara que se tem: Nelson Rodrigues está falando com o leitor.

Nelson previu e alertou em suas crônicas para a banalização de tudo, para a idiotização do país, para a perda dos valores fundamentais, a perda da inteligência, o homem e a mulher infiel, a dissolução da família, a perda de tudo. Nelson alertou contra o anti-Brasil. Muitas vezes compulsiva e obsessivamente Nelson previu e viu começar a acontecer tudo isso que está aí, tudo isso que, infelizmente, hoje é o Brasil. Sempre alertando para os perigos e ridicularizando aqueles que, em nome de ser “pra frente”, comet (iam) (em) e aceita (vam) (m) as maiores atrocidades, porque têm de ser “pra frente”.


Nelson conta, que em seu tempo de criança, um idiota era só um idiota. Todos o reconheciam como idiota. Ele não escrevia, não era acadêmico da USP, não era Presidente da Republica. Os idiotas estavam começando a dominar tudo, tudo, tudo. Os sábios começavam a se calar frente aos idiotas. Ele alertou, ainda em 1968, para o que estava se vendo: era bom ser idiota. O idiota era, e é, glorificado, elogiado, exaltado. O idiota tem orgulho de ser idiota.

Em suas crônicas, Nelson Rodrigues, voz só na multidão, brandia contra o fim da família, a falta de respeito, a “revolução sexual”, a banalização de tudo. Conta, com horror, que certa vez assistiu um filho gritando com o pai “fica quieto se não te parto a cara”. Para apaziguar, o pai deu um carro ao filho. Não seria isso causa da banalização da vida, da violência exacerbada, da falta de respeito geral, da perda de todos os valores, da relativização de tudo que vemos hoje?

Todo o absurdo humano está exposto na obra de Nelson Rodrigues. Mudam-se os lugares, mudam-se as modas, os tempos, mas a ridicularidade humana é sempre a mesma. Em 1968 não era preciso ter nunca aberto a boca, nunca escrito uma linha, nunca militado. Bastava freqüentar o bar Antonio’s para ser socialista desde criancinha.

Nelson mostrou toda a incoerência, todas as absurdidades, todo o ridículo da esquerda que passava o dia na praia se dourando e a noite no Antonio’s vociferando contra a guerra do Vietnã.

“Claro que a esquerda tem o direito de ser esquerda. O que lhe negamos é o direito de ser tão inepta, tão incompetente, tão irrealista, tão alienada do Brasil e, repito, antibrasileira. Examine-se um esquerdista. Ele não chove uma chuva própria. Pensa ‘idéias feitas’, diz ‘frases feitas’, sente ‘sentimentos feitos’. Seu ódio aos Estados Unidos não é realmente um ódio, um sentimento, uma paixão. Não. É uma Palavra de Ordem. Se aqui faz calor, e nos Estados Unidos, frio, foi o imperialismo norte-americano que roubou a nossa neve e a faz chover como papel picado.”

“Diz Roberto Campos que um dos maiores pânicos das nossas esquerdas, inclusive católica, é que os Estados Unidos possam ser riscados do mapa. Digamos que a Rússia faça, de surpresa, um ataque atômico. Em quinze minutos, não há mais Estados Unidos, não há mais norte-americanos, não há mais imperialismo yankee, não há mais nada. [...] Ah, não estou exagerando um milímetro. Há sujeitos, no Brasil, que não estão de quatro e urrando no bosque porque há os Estados Unidos. Xingar essa pobre nação é uma maneira de ser inteligente sem ler, escrever, sem pensar. Vejam os nossos suplementos dominicais. O sujeito lê, lê e pensa que todo mundo está escrevendo o mesmo artigo contra os mesmos Estados Unidos. [...] Paro por um momento e ele me explica: - ‘Falar mal dos Estados Unidos dá mulher’. Diz isso e tem um riso encharcado e torpe de sátiro vadio. Realmente, que falta fariam os Estados Unidos ao gesto, à ênfase à retórica e ao palavrão de tanto brasileiro ilustre.”

“Realmente, é uma imprudência, um risco, um mau negocio não ser marxista. Ou por outra: - não se trata de ser marxista, mas de dizer-se marxista. ‘Dizer-se marxista’ é uma maneira de ser inteligente sem ler o próprio Marx e muito menos o próprio Marx.”

Ler o que Nelson Rodrigues escreveu em 1968 é fundamental para compreender porque viemos parar nisso. Como começou o declínio, o fim, o que aconteceu. Como descemos tão fundo no poço de merda.

De tudo o que Nelson viu, alertou e previu, para a eleição de Lula da Silva foi um pulo, um desenrolar natural dos fatos. Era óbvio ululante, ou melhor, “lulante”.

“O poeta vira-se para mim e faz-me esta acusação horrenda: - ‘Você é um reaça!’. Tremo em cima dos sapatos. Ele insiste: - ‘Você acusa as esquerdas com argumentos da direita!’. [...] E, de fato, tempos atrás, eu me encontrei com o doce radical num terreno baldio. Era meia noite, hora que, segundo Machado de Assis, apavora. O sino da matriz dá as doze badaladas [...], uma coruja rosna. E, então, cochicho para o doce radical: - ‘Callado, vou contar-te uma que eu só diria ao médium, depois de morto. Você jura que não me trai?’. O romancista estende a mão sobre uma Bíblia invisível: - ‘Juro!’.

Com um sorriso terrível, declarei:- ‘Eu sou a encarnação abominável da direita!’. À luz dos archotes, Callado balbucia: - ‘E te pagam para isso, meu bom Nelson?’. A minha satisfação é hedionda:- ‘Não espalha, mas ganho um tutu forte!’”. Nelson Rodrigues.

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