terça-feira, 12 de novembro de 2019

Estado laico, Estado louco

José Maria e Silva

Se depender do Estado laico dos uspianos e de Lula, a nudez grotesca do travesti na via pública não poderá ser criticada — mas um bebê poderá ser extirpado do útero da mãe como um tumor

Com uma deselegância indigna de um Estado civilizado, o governo brasileiro deixou claro — ainda durante a visita do Papa Bento XVI — que não está disposto a dialogar com o Vaticano a respeito de questões como o aborto. Trata-se de mais um estelionato eleitoral cometido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, desde que tomou posse em 1º de janeiro de 2003. Mesmo sendo uma bandeira histórica do PT, a legalização do aborto foi propositalmente escondida durante a campanha de Lula com vistas à reeleição. Em 22 de outubro de 2006, às vésperas do segundo turno, quando o PT demonizava Geraldo Alckmin como suposto membro da Opus Dei, escrevi no Jornal Opção: “Lula esconde dos eleitores que a implantação do aborto é uma das principais políticas públicas de seu governo, perdendo apenas para a santificação do homossexualismo. Em seu programa com vistas à reeleição, o presidente petista propõe ‘a descriminalização do aborto e a criminalização da homofobia’. Ou seja, tirar a vida de um bebê deixará de ser crime; mas criticar a conduta de um travesti passará a sê-lo”.


Na época, o artigo parecia excesso de radicalismo da minha parte; todavia, surpreendendo até a mim mesmo, que não esperava tanta celeridade dos petistas nessa questão, em menos de seis meses do segundo mandato, o governo Lula já se dedica a promover uma completa inversão dos valores morais da sociedade brasileira. Se depender do Estado laico petista, a nudez grotesca do travesti na via pública não poderá mais ser criticada, mas um bebê inocente poderá ser extirpado do útero de sua mãe como se fosse um tumor maligno. No Congresso, parlamentares petistas que são contrários à Lei da Homofobia — um projeto inegavelmente inconstitucional — estão sendo coagidos a mudar de idéia e apoiar sua aprovação. O alinhamento obrigatório com o partido pode se estender aos seus membros que são contrários ao aborto, como o deputado Luiz Bassuma, do PT da Bahia, presidente da Frente Parlamentar Mista de Defesa da Vida e Contra o Aborto. Como fez pacto com o mercado e já não tem autoridade para pregar a revolução econômica, o PT está empenhado em alinhar consciências morais, impondo sua agenda socialista no campo dos costumes. Para isso, o PT conta com três grandes aliados — as universidades, o Ministério Público e o Judiciário.

Privilégios do crime — Hoje, a “moral” de esquerda — tão cara à pensatriz Marilena Chauí — se tornou majoritária entre intelectuais, promotores e magistrados, a exemplo do que ocorreu nos regimes totalitários da primeira metade do século XX. Hitler só se tornou possível porque a mentalidade predominante naquele momento histórico não hesitava em sacrificar o indivíduo no altar da coletividade — característica inerente a todos os regimes totalitários, seja o nazismo, seja o marxismo, fazendo deles “irmãos siameses”, como observa o sociólogo francês Alain Besançon. É o que está ocorrendo no Brasil, em que a pessoa de bem foi completamente destituída de sua individualidade — hoje, só o criminoso goza do privilégio de ser indivíduo no Brasil. Enquanto bandidos são “sujeitos de direitos” dentro da própria cadeia, recebendo tratamento personalizado do Estado brasileiro, as vítimas são meras estatísticas nos prontuários de delegacias, hospitais e necrotérios. Quanto mais monstruoso é um assassino, como Champinha ou Beira-Mar, melhor é o atendimento personalizado que recebe. E se uma vítima — como o menino João Hélio — é arrancada do anonimato pela comoção pública, não faltam intelectuais uspianos, como o sociólogo Paulo Sérgio Pinheiro, para devolvê-lo às estatísticas, sob a alegação de que não se deve chorar um burguês, ainda que esse “burguês” seja uma inocente criancinha.

Há muito os intelectuais marxistas mataram Deus — e não vêem a hora de aniquilar o indivíduo, feito à imagem e semelhança divina. Daí o ódio que devotam ao Papa Bento XVI, porque este Papa, mais do que João Paulo II, não transige com o perigoso relativismo do mundo moderno, que não hesita em fazer do homem uma massa de modelar nas mãos de falsos profetas, como o próprio Marx. Durante a visita do Papa, boa parte do noticiário da imprensa devotou-se à missão de jogar a população brasileira, inclusive os católicos, contra o Sumo Pontífice. Em que pese a Rede Globo se mostrar mais favorável ao Papa (provavelmente, devido à sua guerra particular contra os evangélicos), o jornalismo do canal Globonews, na TV paga, deu amplo espaço para os críticos do Vaticano. Num trocadilho malévolo com sua nacionalidade, Bento XVI chegou a ser chamado de “pastor alemão”. Mas o mau exemplo vem da própria Europa: o diário londrino The Times disse que o Papa “chegou atirando” ao Brasil, apenas porque Bento XVI — como não poderia deixar de ser — defendeu a sacralidade da vida. Ora, o grande sábio francês Émile Durkheim (1858-1917), verdadeiro pai da sociologia, também sustentava a sacralidade do indivíduo humano, apesar de ser um ateu assumido.

Mas Émile Durkheim só era capaz de não crer em Deus e, mesmo assim, respeitar profundamente o indivíduo, porque nunca se imaginou capaz de reconstruir o mundo à imagem e semelhança de sua própria cabeça, como quis Jean-Jacques Rousseau, o pai de todos os revolucionários, e Karl Marx, seu discípulo mais charlatão. Seguindo o exemplo de Aristóteles, o maior de todos os filósofos, Durkheim tinha a humildade dos sábios, inclusive para reconhecer que — mesmo sendo um homem de ciência, ateu e racionalista — muito devia à religião. Se os tutores uspianos do presidente Lula — que lhe mandam repetir psitacideamente o vocábulo laico — conhecessem verdadeiramente Durkheim, o Brasil não estaria chafurdando no abismo moral da anomia, como ocorre hoje. Como sociólogo e um dos reformadores do ensino na França, justamente no momento em que se dava a separação entre Igreja e Estado no país, Durkheim ajudou a forjar, na prática, as Repúblicas laicas do mundo contemporâneo. Enquanto o megalômano Marx queria destruir o universo por se julgar capaz de construir outro, Durkheim, humildemente, limitava-se a tentar tornar este mundo um pouco menos ruim do que sempre foi.

Sócrates e Cristo — Mesmo sendo um dos pais espirituais da República laica, Durkheim nunca deixou de reconhecer o papel da Igreja na formação do Ocidente e na construção do indivíduo. No livro A Evolução Pedagógica, publicado postumamente em 1938, mas iniciado no ano de 1904, como um curso de história do ensino na França, no âmago das reformas que promovia na escola francesa, Durkheim resgata a importância da Igreja na Idade Média, mostrando que ela foi a única instituição capaz de garantir o mínimo de ordem na convulsa Europa das invasões bárbaras: “De todas as escolas municipais que ilustraram a Gália a partir do século IV, não resta nada; todas elas foram varridas, levadas pela torrente da invasão; apenas as escolas dos mosteiros e das igrejas permaneceram abertas. Foram os únicos órgãos da educação pública, os únicos lugares onde não houvera uma parada total, uma irreparável solução de continuidade do progresso humano”. E diante do papel vital da Igreja Católica em meio à “torrente furiosa” dos invasores, Durkheim não hesita em declarar: “Não tivesse estado lá a Igreja naquele momento, estava acabada a cultura humana e podemos perguntar-nos o que teria sido da civilização”.

Nessa obra-prima da história da educação (infelizmente menosprezada pelos doutrinadores marxistas que infestam as faculdades de pedagogia), Durkheim mostra que o ensino oferecido pelo cristianismo não se limitava a adornar o aluno com habilidades externas, como se fazia na Antigüidade Clássica, mas procurava alcançar o âmago de sua personalidade, o que significava criar o próprio indivíduo, construindo nele um “estado interior e profundo”, abortado em Sócrates, alguns séculos antes. Ao contrário do que acredita a ignorância laica que se passa por ciência avançada, o indivíduo não é uma invenção da Renascença ou da ascensão da burguesia — ele nasce como filosofia em Sócrates e encarna-se como história em Cristo. O que são Sócrates e Jesus senão dois indivíduos que desafiam a Acrópole e o Sinédrio, buscando a verdade em si mesmos como imagem e semelhança de um Logos universal? Antes de ser institucionalizado pelo Império Romano, graças à disciplinada missão do soldado Saulo de Tarso (batizado Paulo), o cristianismo era uma espécie de pedagogia do livre-arbítrio contra as normas do Estado teocrático, daí a perseguição de que foi vítima durante séculos. Quando Jesus Cristo pronuncia sua célebre frase sobre o Império Romano (“Daí a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”), ele separa — pela primeira vez na história da humanidade — a Religião do Estado, desencarnando da figura do Rei a essência de Deus e fazendo nascer, verdadeiramente, a consciência individual. E em nome dela que prega o Papa Bento XVI — contra esse Estado laico cada vez mais louco.

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Folha: http://www.jornalopcao.com.br/index.asp?secao=Destaques2&idjornal=237.

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