quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

"Meu amigo comunista"

por Manoel Carlos

Para dizer a verdade, não era meu amigo. Não chegou a ser. Eu apenas o conheci, apresentado, aí sim, por um amigo dos tempos de internato em Bragança Paulista. Foi num barzinho da Praça da República, lá em São Paulo. Naquele tempo era pitoresco ter um amigo comunista. Falava-se à boca pequena:

– Vem cá, que eu vou te apresentar um comuna. Fica natural. É gente boa. 

Os comunistas que conhecíamos eram Luís Carlos Prestes e Jorge Amado. Exatamente como durante os muitos anos que se seguiram. Jorge era nosso ídolo, comunista de verdade, não apenas na ótica da nossa juventude, mas também na das pessoas mais velhas e quase tão lúcidas quanto as crianças. 

Ah, agora também me lembro de uma história que me foi contada pelo Mário de Almeida, queridíssimo e velho amigo, sobre um sujeito que ficava na porta do bar paulistano Harmonia e, quando um mendigo se aproximava, na base do "uma esmolinha, pelo amor de Deus", ele não só recusava o auxílio como ainda ofendia o pobre coitado:

– Que esmola, que nada! Então você não vê que eu estou aqui, fazendo uma horinha pra tomar meu uísque e depois jantar? E você vem me atrapalhar, pedindo esmola? Quero mais é que você morra de fome e de frio, vagabundo!

Era assim, me contou o Mário há muitos anos. E quando, inevitavelmente, alguém se espantava e mesmo se indignava com tamanha agressividade, ele justificava:

– Deixa comigo. Estou apenas plantando a revolta nele. Apressando a revolução. 

Mas voltemos ao meu amigo comunista que não chegou a ser meu amigo. Ele tinha ódio de Walt Disney. Para ele, o pai do Mickey era o culpado de tudo de ruim que acontecia no mundo, a começar pela alienação que instilava nas pessoas desde a mais tenra idade. Perto dele e ouvindo o ecoar do seu ódio, a gente chegava a sentir remorso por ter gostado de Pinóquio e Branca de Neve, sem contar o Pato Donald e seu tio Patinhas, este o exemplo máximo do capitalismo ocidental. E ele esbravejava contra toda a família de Patópolis, contra os sobrinhos de Donald, os simpáticos Huguinho, Luisinho e Zezinho:

– Não trabalham! Vivem de mesada! São parasitas sociais!

Confesso que eu, por um deslumbramento alienado, não conseguia compreender aquele rancor com obras tão coloridas e lindas, prazer de crianças e adultos. O que hoje soa cômico àquela época me incomodava, evidenciava uma falta grave da minha parte.

Mas... por que estou eu aqui, reproduzindo, com algumas mudanças, um texto que escrevi há muitos anos e que o meu amigo Mário de Almeida me mandou também há muito tempo?

Explico: fiquei sabendo, indo a São Paulo, que esse comunista do meu longínquo passado, desafeto do Disney, morreu há pouco mais de um mês, com 82 anos de idade. E soube então que ele deixou escrito um último pedido: que fosse enterrado com a bandeira da União Soviética, aquela da foice e do martelo. Me contaram que a viúva, os filhos e alguns amigos se puseram a procurar por um exemplar dessa bandeira, até mesmo no consulado russo, mas que não houve meio de encontrá-la. Então, já com o tempo curto, a hora do enterro se aproximando, dona Carmen, a viúva, reuniu as amigas do condomínio em que moravam e, juntas, bordaram precariamente a foice e o martelo num lençol. Colocado sobre o caixão, deu-se então o sepultamento. E lá se foi, terra abaixo, o comunista velho de guerra, ao encontro da possível igualdade entre os homens. 

http://vejabrasil.abril.com.br/rio-de-janeiro/editorial/m607/meu-amigo-comunista

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