sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Reflexões sobre o Estudo da Idade Média

Raúl Cesar Gouveia Fernandes
M. Sc. Letras FFLCHUSP - Prof. Filosofia FEI
e-mail: rfernandes@br2001.com.br

1. Nas últimas décadas, a Idade Média tem suscitado um interesse crescente. Desde os anos 50, aproximadamente, os estudos medievais conquistaram um posto de honra na historiografia, razão pela qual têm sido amplamente divulgados no Brasil; mas essa curiosidade já extrapolou os restritos círculos acadêmicos. Nos dias de hoje, a Idade Média exerce também uma fascinação irrecusável sobre a imaginação do grande público, conforme testemunham a crescente quantidade de publicações de textos literários medievais e o fato de que recriações das narrativas sobre o rei Artur, o Santo Graal ou o mago Merlin sejam atualmente responsáveis por alguns best-sellers nas livrarias e por gordas bilheterias nos cinemas: é o sucesso da Idade Média na sociedade de consumo.



Esse interesse é bem compreensível, pois falar da Idade Média é, de certa forma, falar de nós mesmos. Ela representa o longo período de gestação no qual foi criado o mundo moderno: as atuais nações européias, das quais derivamos, juntamente com suas respectivas línguas e literaturas, são parte do legado medieval. Nosso quotidiano está repleto de inovações surgidas naquela época, como as universidades, os bancos, e ainda a imprensa, o relógio mecânico e os óculos. De acordo com Hilário Franco Júnior, devemos à Idade Média inclusive a origem dos modernos sistemas de representação política e os fundamentos da mentalidade científica que caracterizam a civilização ocidental(1).

Pode-se afirmar, portanto, que os estudos medievais também auxiliam a compreender a história e a cultura dos países americanos: a própria expansão marítima, que ocasionou a descoberta do Novo Mundo, tem suas raízes solidamente vincadas na Idade Média. Temas da literatura medieval, como a gesta de Carlos Magno, permanecem vivos ainda hoje na poesia de cordel nordestina; além disso, é sabido que diversos escritores brasileiros de nosso século, entre os quais Manuel Bandeira, Guimarães Rosa e Adélia Prado, beberam fartamente de fontes medievais.

2. Apesar do significativo renovamento dos estudos sobre a Idade Média, ela ainda é muito pouco conhecida, ou — o que é pior — mal conhecida por quem não é especialista. As noções fragmentadas e contraditórias transmitidas na escola permitem que se use (e abuse) de conceitos relativos à Idade Média segundo a conveniência de cada um: desde o militante político que apelida a perversa concentração fundiária brasileira de “feudal”, até os novos “magos” de hoje que procuram se revestir de uma aura “medieval” para vender livros de auto-ajuda.

O fato mais grave, no entanto, é que a Idade Média segue sendo vítima de um grande preconceito. Para muitos, ela ainda representa um período no qual a humanidade, subjugada pela ignorância e flagelada pela peste, viveu oprimida sob o terror das fogueiras da Inquisição. Afinal de contas, continua a ser aceito o rótulo de “idade das trevas”, como se no milênio que permeia a queda do Império Romano e a chegada de Colombo à América não houvesse sido criado nada que fosse digno de nota. Que dizer então do canto gregoriano, da Divina Comédia ou dos avanços arquitetônicos que permitiram erguer catedrais ainda hoje admiradas? Muitas vezes estes são detalhes convenientemente esquecidos a fim de justificar um quadro histórico esquemático, segundo o qual deve haver uma época de barbárie que anteceda e justifique o Renascimento do século XVI — e assim equívocos históricos injustificáveis são perpetuados(2). Foi contra essa “lenda negra” que a medievalista francesa Régine Pernoud se insurgiu em seu livro O Mito da Idade Média(3).

3. O maior obstáculo ao conhecimento da Idade Média é justamente o arraigado preconceito que nutrimos acerca deste período. Estimulado por uma idéia preconcebida, o estudioso pode incorrer no erro de reduzir a pesquisa histórica à mera seleção de dados que corroborem sua impressão inicial. Acreditamos, por exemplo, ser este o defeito de O Nome da Rosa, famoso romance de Umberto Eco ambientado num mosteiro beneditino do século XIV. Embora o autor demonstre possuir conhecimento detalhado de algumas particularidades da cultura medieval, o resultado é no mínimo parcial: foram escolhidos apenas os elementos mais estereotipados do já gasto bordão sobre a Idade Média crédula e obscurantista. O fato de se tratar de um texto de ficção não muda os dados do problema. Veja-se a cena do incêndio da biblioteca ao final do romance: é destacada a destruição de livros, mas esqueceu-se de dizer que, se não fosse pela obra anônima dos monges que preservaram e estudaram com a proverbial paciência beneditina a obra dos escritores antigos ao longo de mil anos, ela não teria chegado até nós(4).

O conhecimento autêntico pressupõe aquela “vontade de nos enriquecermos, de sairmos de nós mesmos” que Henri-Irenée Marrou associava à virtude da docilitas, a humilde demanda da verdade(5). “Sair de nós mesmos”, neste caso, significa estar disponíveis a ouvir com atenção o que os documentos históricos têm a nos revelar, que é o contrário de projetar sobre eles idéias ou teorias preestabelecidas. Com efeito, a verdade pode nos enriquecer apenas se a procurarmos livres de qualquer tipo de censura prévia.

4. Outra fonte de equívocos é a tendência, muitas vezes inconsciente, de interpretar os fatos do passado utilizando critérios ditados pela cultura de nosso tempo, sem cuidar que eles talvez não se apliquem ao período estudado. Qualquer dado histórico manifesta plena e adequadamente seu significado apenas se é observado no contexto do qual faz parte; por isso, é necessário inteirar-se dos valores culturais e sociais da época que o gerou para avaliá-lo com propriedade.

Ora, uma das principais características da Idade Média é sua intensa religiosidade — e a dificuldade de compreensão deste fator fundamental tem sido uma importante fonte de mal-entendidos. Se hoje o fator religioso é percebido como algo estranho à vida, para o homem medieval, ao contrário, a esfera do sagrado era reconhecida presente e encarnada nas contingências da vida quotidiana(6). Congregados pelo irresistível apelo da religião, homens e mulheres de todas as regiões da Europa adquiriram, a partir do século X, a consciência de formar um povo único, uma entidade que pretendia espelhar e prefigurar a ordem celeste: a Cristandade. “Cada um”, observa Daniel-Rops, ”trabalhando ao longo de sua existência, tinha a certeza de colaborar numa grande obra que o ultrapassava”(7), contribuindo com sua pequena pedra para levantar a catedral, segundo a imagem utilizada por Paul Claudel(8). A “extraordinária capacidade que os homens da Idade Média tinham de pensar e agir em conjunto” deve-se, portanto, ao fato de que “o sentido da transcendência arrancava o indivíduo da sua condição particular (...) para impulsioná-lo rumo a um ideal absoluto, tal como uma terra santa a ser libertada, uma igreja a ser construída, ou então, com obstinada candura, um herege a ser queimado vivo”(9). Quem negligenciar esse dado prejudicará gravemente sua capacidade de compreensão histórica: como descrever as Cruzadas ou a Inquisição sem levar em conta o fato de que a religião era o cimento da sociedade medieval?

5. Até aqui insistimos sobre a necessidade de se adotar uma atitude de abertura e submissão aos documentos, alertando para o fato de que preconceitos e anacronismos podem distorcer os resultados da pesquisa. De fato, a realidade histórica sempre se revela mais densa, complexa e rica do que certos conceitos dos quais facilmente nos tornamos prisioneiros. Frisar a exigência de fidelidade às fontes, no entanto, não quer dizer que o ofício do historiador seja meramente passivo ou receptivo.

Ao estudioso cabe a tarefa de fazer os documentos falarem. Muitas vezes, o material analisado parece bem pouco eloqüente; a quantidade e a qualidade das informações que serão extraídas dele dependem da habilidade do historiador ao questioná-lo. A pesquisa não se resume à compilação de informações que os documentos já fornecem “prontas”: compete ao estudioso abordá-los adequadamente e formular hipóteses explicativas para os dados observados. Sendo assim, a documentação histórica pode ser considerada uma fonte inesgotável de conhecimentos, pois sempre poderá revelar aspectos até então ignorados se submetida a novas interrogações. É preciso observar, contudo, que o questionamento das fontes é uma habilidade que deve ser desenvolvida, pois atualmente se cultiva mais a dúvida sistemática (que termina por imobilizar a inteligência) do que a atenção genuína aos porquês últimos da realidade.

É justamente por ter formulado interrogações que ainda não haviam sido feitas, alargando os horizontes da pesquisa histórica, que a obra de certos medievalistas têm conquistado relevância crescente. Um dos precursores desta renovação foi Johan Huizinga, que — há 70 anos, quando a pesquisa histórica se limitava a temas políticos e econômicos — procurou descrever os ideais, os sentimentos e as formas de pensamento do homem medieval, numa obra que continua estimulante ainda hoje(10). Estava aberto o caminho para a “nova história”, escola à qual se filiam historiadores do porte de Jacques le Goff e Georges Duby.

6. Se o resultado da análise é condicionado pelo questionamento proposto pelo estudioso, conclui-se que a investigação histórica será sempre inevitavelmente plasmada pela personalidade do pesquisador. Os documentos históricos são “testemunhos da experiência de homens do passado”; como tais, solicitam que também a experiência humana de quem os lê entre em jogo para serem compreendidos(11). Quanto mais atento e curioso for o pesquisador, mais fecunda será portanto sua investigação: “o valor do conhecimento histórico é diretamente função da riqueza interior, da abertura de espírito, da magnanimidade de quem o elaborou. (...) O historiador deve ser também, primeiro que tudo, um homem plenamente homem, aberto a tudo o que é humano”(12). E não poderia ser de outra forma: o historiador, em particular o medievalista, lida com elementos que, embora cronologicamente distantes, dizem algo a respeito de sua própria pessoa e da sociedade na qual ele vive.

A pesquisa histórica pode ser descrita, portanto, como um encontro. Neste encontro com o outro reconheceremos, para além das diferenças, uma série de afinidades, graças às quais é possível estabelecer um diálogo com o passado. Com efeito, “é nesta tensão entre o mesmo e o outro que o conhecimento da humanidade mais antiga pode continuar a enriquecer nossa existência, num século em que a ansiedade do homem nasce do questionamento de todas as suas referências fundamentais”. Por isso, a história se escreve “apoiando-se ao mesmo tempo na presença da memória do passado e na compreensão da distância que existe entre esse passado e o presente”(13). Exemplar, neste sentido, é a reflexão de Régine Pernoud acerca das origens medievais dos conceitos de casamento e direitos da mulher, temas que estão no centro de debates cruciais dos dias de hoje(14).

7. A esta altura, o leitor poderá perguntar: se a investigação histórica é produzida no cruzamento entre o “eu” e o “outro”, entre presente e passado, como é possível o conhecimento objetivo da história?

O conhecimento objetivo ou científico do passado pressupõe a adoção de um método seguro, que permita uma abordagem fiel das fontes. Não se deve, entretanto, confundir rigor metodológico com a obsessão positivista de eliminar a possibilidade de interferência da personalidade do estudioso no desenvolvimento da pesquisa para evitar os riscos de uma análise “subjetiva” da documentação. Essa pretensão se revela, em particular no campo das ciências humanas, uma utopia prejudicial: se limitarmos nossa investigação somente àquilo que pode ser considerado “objetivo” ou “comprovado” — conceitos que são, de resto, bastante escorregadios —, terminaremos por reduzir a história a uma coleção de fatos desconexos ou então a simples sondagens estatísticas. Dessa forma, em suma, ficaríamos à margem do que é mais importante conhecer, isto é, o significado dos acontecimentos, das idéias e das experiências dos homens do passado(15).

A neutralidade total do pesquisador é uma meta inatingível: só seria possível na hipótese absurda de que o objeto de estudo lhe fosse inteiramente indiferente (mas então por que estudá-lo?). Imparcialidade não significa aridez; já notamos que a riqueza interior do estudioso é um ingrediente fundamental na elaboração do conhecimento histórico.

Contrariando a estéril tentativa de levar o pesquisador ao estado de ataraxia a fim de garantir a objetividade do trabalho científico, Marrou afirma que entre o sujeito e o objeto da investigação deve haver uma relação de simpatia e amizade, pois, como já dizia Santo Agostinho, “não se pode conhecer ninguém a não ser pela amizade”. Não se trata, evidentemente, de maquiar o passado, substituindo a “lenda negra” sobre a Idade Média por uma “lenda dourada” igualmente tendenciosa. A simpatia e a amizade de que o autor fala constituem o fundamento da dedicação sincera na tentativa de conhecer o outro como ele realmente é: “a amizade autêntica, na vida como na história, supõe a verdade”(16).

A verdadeira simpatia pelo objeto é, paradoxalmente, uma condição indispensável para gerar em nós aquele desapego necessário no caso de os resultados da pesquisa contrariarem nossas hipóteses ou expectativas. A humilde disponibilidade de aceitar a verdade tal como ela se nos apresenta, e não como gostaríamos que fosse, é o que Luigi Giussani apelidou de “regra moral” do conhecimento: “amor à verdade do objeto maior que nosso apego às opiniões que já formamos sobre ele”(17).

8. Embora entrem em conflito com algumas idéias atualmente em voga, as sugestões metodológicas propostas pelos autores citados estão em perfeita sintonia com a mentalidade medieval. Se para muitos hoje, o termo estudo evoca uma atividade insossa e meramente cerebrina, na Idade Média, como notou Luiz Jean Lauand, o alcance semântico de studium era mais amplo: “Studium significa amor, afeição, devotamento, a atitude de quem se aplica a algo porque ama”(18).




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(1). A Idade Média: Nascimento do Ocidente. São Paulo, Brasiliense, 1986, pp. 170-179.

(2). Cf. Nunes, Ruy A. da Costa. História da Educação na Idade Média. São Paulo, EDUSP, 1979, pp. 9-30.

(3). Lisboa, Europa-América, s / d.

(4). Cf. Dawson, C. Il Cristianesimo e la Formazione della Civiltà Occidentale, Milão, Rizzoli, 1997, p. 60.

(5). Do Conhecimento Histórico, Lisboa, Martins Fontes, s / d, pp. 85 e 231.

(6). Cf. Giussani, Luigi. O Senso de Deus e o Homem Moderno, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1997, p. 101 e ss.

(7). A Igreja das Catedrais e das Cruzadas, São Paulo, Quadrante, 1993, p. 39.

(8). O Anúncio Feito a Maria, Rio de Janeiro, Agir, 1968, p. 28.

(9). Marchi, Cesare. Grandes Pecadores, Grandes Catedrais, São Paulo, Martins Fontes, 1991, p. 39.

(10). Cf. O Declínio da Idade Média, Lisboa, Ulisséia, s / d.

(11). Cf. Massimi, Marina. “Partir do Presente”, in: Litterae Communionis, 57, maio / junho 1997.

(12). Marrou, Henri-Irenée. Op. cit., p. 92.

(13). Fontaine, J. “Face à la Foi des Premiers Siècles”, in: Delumeau, J. L’Historien et la Foi, Paris, 1996, p. 116.

(14). Cf. A Mulher no Tempo das Catedrais, Lisboa, Gradiva, 1984.

(15). Cf. Brooke, Christopher. O Casamento na Idade Média, Lisboa, Europa-América, pp. 15-32.

(16). Marrou, Henri-Irenée. Op. cit., p. 88.

(17). Giussani, Luigi. O Senso Religioso. 2a edição, São Paulo, Companhia Ilimitada, 1993, p. 59.

(18). Cultura e Educação na Idade Média, São Paulo, Martins Fontes, 1998, p. 302.

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Fonte: http://www.hottopos.com.br/videtur6/raul.htm.

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